sexta-feira, 19 de setembro de 2008

NAVIO
Tenho a carne dorida
Do pousar de umas aves
Que não sei de onde são:
Só sei que gostam de vida
Picada em meu coração.
Quando vêm, vêm suaves;
Partindo, tão gordas vão!

Como eu gosto de estar
Aqui na minha janela
A dar miolos às aves!
Ponho-me a olhar para o mar:
—Olha-me um navio sem rumo!
E, de vê-lo, dá-lhe a vela,
Ou sejam meus cílios tristes:
A ave e a nave, em resumo,
Aqui, na minha janela.
Vitorino Nemésio

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Júlio Pomar : Lusitânia no Bairro Latino (retratos de Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Sousa Cardoso), 1985
Lusitânia no Bairro-Latino
1

...................................... Só!
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó,
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês d'Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse pra soldado,
Antes fosse prò Brasil...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram da sua lã.

António era o Pastor desse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar.
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Pra serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
Que era da minha Torre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava "Ave-Maria..."
E as doces ovelhinhas imitavam-me.

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!

As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!

Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...

Ai do Lusíada, coitado!

Veio da terra, mai-lo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar águas do Sena...
É negra a sua farinha!
Orai por ele! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...

           Ó minha
Terra encantada, cheia de Sol,
Ó campanários, ó Luas Cheias,
Lavadeira que lavas o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
Ó ceifeira que segas cantando
Ó moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando...
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão!

Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?

Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca a fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões d'água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades d'Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!

Onde estais? onde estais?

O minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes às Ave-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia!
Estrada de S.Tiago! Sete-Estrelo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos as lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó bruxa do Padre, que botas as cartas!
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que andavam, lá fora,
Pelo porta-voz...
Arrabalde! marítimo da França,
Conta-me a história da Fermosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Cores!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando à noite, como flores!
Ondas do mar! Serras da Estrela d'água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!

Onde estais? onde estais?

Convento de águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadessa secular é a Lua
E cujo Padre-capelão é o Vento...
Água salgada desses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
O Mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o sul, às vezes, arrola à praia -
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais...
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
O defuntos do Mar! ó roxos arrolados!

Onde estais? onde estais?

Ó Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa vivalma de areais!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
Ó Sant'Ana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela areia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado,
Atracou, diz a História,
No dia... não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor d'Areia,
Onde o Senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos dos vestidos da Sereia!
Lanchas da Póvoa, que ides à sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças.
Sol-pôr, entre pinhais...
Capelas onde o sol faz mortes, nas vidraças!

Onde estais?


2
Georges! anda ver meu país de Marinheiros, O meu país das naus, de esquadras e de frotas! Oh as lanchas dos poveiros A saírem a barra, entre ondas de gaivotas! Que estranho é! Fincam o remo na água, até que o remo torça, À espera de maré, Que não tarda aí, avista-se lá fora! E quando a onda vem, fincando-a com toda a força, Clamam todas à uma: "Agôra! agôra! agôra!" E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo (Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...) Que vista admirável! Que lindo! que lindo! Içam a vela, quando já têm mar: Dá-lhes o Vento e todas, à porfia, Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas, Rosário de velas, que o vento desfia, A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas: Senhora Nagonia! Olha acolá! Que linda vai com seu erro de ortografia... Quem me dera ir lá! Senhora Da guarda! (Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor) Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda O caçador! Senhora d'ajuda! Ora pro nobis! Caluda! Sêmos probes! Senhor dos ramos Istrela do mar! Cá bamos! Parecem Nossa Senhora, a andar. Senhora da Luz! Parece o Farol... Maim de Jesus! É tal e qual ela, se lhe dá o Sol! Senhor dos Passos! Sinhora da Ora! Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços Parecem ermidas caiadas por fora... Senhor dos Navegantes! Senhor de Matuzinhos! Os mestres ainda são os mesmos dantes: Lá vai o Bernardo da Silva do Mar, A mai-los quatro filhinhos, Vascos da Gama, que andam a ensaiar... Senhora dos aflitos! Martyr São Sebastião! Ouvi os nossos gritos! Deus nos leve pela mão! Bamos em paz! Ó lanchas, Deus vos leve pela mão! Ide em paz! Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados, O Jéques, o Pardal, na Nam te perdes, E das vagas, aos ritmos cadenciados, As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes, "As armas e os varões assinalados..." Lá sai a derradeira! Ainda agarra as que vão na dianteira,.. Como ela corre! com que força o Vento a impele: Bamos com Deus! Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com ele Por esse mar de Cristo... Adeus! adeus! adeus!
3
Georges! anda ver meu país de romarias E procissões! Olha estas moças, olha estas Marias! Caramba! dá-lhes beliscões! Os corpos delas, vê! são ourivesarias, Gula e luxúria dos Manéis! Têm nas orelhas grossas arrecadas, Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, Ao pescoço serpentes de cordões, E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Além dos seus, mais trinta corações! Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito, Toca a bailar! Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito, Que hão-de gostar! Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão. Estralejam foguetes e morteiros. Lá vem o Pálio e pegam ao cordão Honestos e morenos cavalheiros. Altos, tão altos e enfeitados, os andores, Parecem Torres de David, na amplidão! Que linda e asseada vem a Senhora das Dores! Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde. Contempla! Que tristes os Nossos Senhores, Olhos leais fitos no vago... não sei onde! Os anjinhos! Vêm a suar: Infantes de três anos, coitadinhos! Mãos invisíveis levam-nos de rastros Que eles mal sabem andar. Esta que passa é a Noite cheia de astros! (Assim estava, em certo dia, na Judeia! Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!) E aquela outra é a Lua-Cheia! Seus doces olhos fazem luar... Essa, acolá, leva na mão os Dados, Mas perde tudo se vai jogar. E esta que passa, toda de arminhos, (Vê! d'entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe) Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, Criança em flor que ainda não os tem. E que bonita vai a Esponja de Fel! Mas ela sabe, a inocentinha, Nas suas mãos, a Esponja deita mel: Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira! Lá vem a Lança! A bainha Traz ainda o sangue da Sexta-Feira... Passa o último, o Sudário! O Corpo de Jesus, Nosso Senhor... Oh que vermelho extraordinário! Parece o Sol-pôr... Que pena faz vê-lo passar em Portugal! Ai que feridas! e não cheiram mal... E a procissão passa. Preamar de povo! Maré-cheia do Oceano Atlântico! O bom povinho de fato novo, Nas violas de arame soluça, romântico, Fadinhos chorosos da su'alma beata. Trazem imagens da Função nos seus chapéus. Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu ferro-e-oiro, O Sol em glória brilha olímpico, e de prata, Como a velha cabeça aureolada de Deus! Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro. Passam as chocas, boas mães! passam capinhas. Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas! Pão-de-ló de Margaride! Aguinha fresca da Moirama! Vinho verde a escorrer da vide! À porta dum casal, um tísico na cama, Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo, E uma netinha com um ramo de loireiro Enxota as moscas, do moribundo. Dança de roda mai-las moças o coveiro. Clama um ceguinho: "Não há maior desgraça nesta vida, que ser ceguinho!" Outro moreno, mostra uma perna partida! Mas fede tanto, coitadinho... Este, sem braços, diz "que os deixou na pedreira..." E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, Labareda de cancros em fogueira, Que o Sol atiça e que a gangrena apaga, Ó Georges, vê! que excepcional cravina... Que lindos cravos para pôr na botoeira! Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jobs! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Deliriums-tremens! Quistos! Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam "uma esmolinha p'las alminhas Das suas obrigações!" Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar... Qu'é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não vêm pintar? Paris, 1891-1892
António Nobre

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

(a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cravada
no espelho. Ou ainda a fenda
da fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.
Herberto Helder