segunda-feira, 18 de junho de 2007

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NO TEU LUGAR DESCONFIARIA
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No teu lugar desconfiaria do cavaleiro de palha
Essa espécie de Rogério libertando Angélica
Leitmotiv aqui das bocas do metro
Dispostas em fila nos teus cabelos
É uma encantadora alucinação liliputiana
Mas o cavaleiro de palha o cavaleiro de palha
Põe-te à garupa e ambos vos laiçais na alta alameda de álamos
Cujas primeiras folhas perdidas põem manteiga nas rosas bocados de pão do ar
Adoro essas folhas tanto como
O que há de mais independente em ti
A sua pálida balança
De contar violetas
Apenas o necessário para transparecer nos mais altos ternos sulcos do teu corpo
A mensagem indecifrável capital
De uma garrafa há muito tempo no mar
E adoro-as quando se junta como um galo branco
Furioso na escadaria do castelo do violência
À luz dilacerante onde não se trata já de viver
Na clareira encantada
Como o caçador a apontar uma espingarda de culatra de faisão
Essas folhas que são a moeda de Danaé
Quando é possível chegar-me a ti até deixar de te ver
Estreitar em ti esse lugar amarelo devastado
O mais resplandecente do teu olho
Onde as árvores voam
Onde os prédios começam a ser sacudidos por uma alegria de mau porte
Onde os jogos do circo prosseguem na rua com um luxo desenfreado
Sobreviver
Do mais longínquo desprendem-se duas ou três silhuetas
Sobre o pequeno grupo ondula a bandeira parlamentar

domingo, 17 de junho de 2007



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EU NÃO podia sentir no nevoeiro
Tua imprecisa imagem de ansiedade,
Oh meu Deus, foi o sussuro que primeiro
Me saiu do peito bem contra a vontade.
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O nome de deus, como um pássaro grande,
Do meu peito a voar se despedia!
À minha frente paira uma névoa espessa,
Atrás ficava uma gaiola vazia...

sábado, 16 de junho de 2007


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A Angústia
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Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.
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Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.
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Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.
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Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.
Paul Verlaine

sexta-feira, 15 de junho de 2007

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COMO VIVER. O QUE FAZER
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Ontem à tardinha a lua nasceu sobre esta rocha
Impura sobre um mundo inexpurgado.
O homem e seu companheiro pararam
Para descansar perante a heróica altura.
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Friamente o vento caiu sobre eles
Em muitas majestades de som:
Eles que tinham deixado o sol de chama caprichosa
Em busca de um sol de fogo mais intenso.
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Em vez disso havia esta rocha tufada
Elevando-se massivamente alta e nua
Para lá de todas as árvores, os cumes atirados
Como braços gigantes por entre as nuvens.
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Não havia nem voz nem imagem cristada,
Nenhuma corista, nem padre. Havia
Apenas a grandiosa altura da rocha
E os dois parados de pé a descansar.
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Havia o vento frio e o som
Que fazia, longe do esterco da terra
Que tinham deixado, som heróico
Alegre e jubiloso e seguro.
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quinta-feira, 14 de junho de 2007

DESPRENDE-TE, CORAÇÃO
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Desprende-te, coração, da árvore do tempo,
soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,
outora abraçados pelo sol,
soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.
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Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento
na fronte tisnada do deus do campo,
sob a camisa aperta o punho
já a ferida aberta.
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por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens
voltar a curvar-se para ti,
não te iludas se o Himeto te encher
de novo os favos.
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De pouco vale ao lavrador uma erva na seca,
de pouco um verão, face à nossa grande estirpe.
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E que testemunha afinal o teu coração?
Entre ontem e amanhã balança,
silencioso e estranho,
e o seu bater
é já a sua queda para fora do tempo.
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quarta-feira, 13 de junho de 2007

Aniversários: Fernando Pessoa & Vieira da Silva

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Requerimento em 30 linhas
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Fernando Pessoa, solteiro, maior, abreviado, morador onde Deus é servido conceder-lhe que more, em companhia de diversas aranhas, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonos; tendo recebido indicação- aliás apenas telefónica- de que poderá ser tratado como (10 linhas) gente a partir de uma data a fixar, e de que o referido tratamento de como se fosse gente seria constituido por, não um beijo, mas a promessa dele, a ser adiado indefinidamente, e até ele Fernando Pessoaprovar que tem 8 meses de idade, é bonito, existe, agrada à entidade encarregada da distribuição da (20 linhas) mercadoria, e não se suicida antes do assunto, como era sua obrigação natural; requere, para tranquilidade da pessoa encarregada da distribuição da mercadoris, que lhe seja passado um atestado em como não tem 8 meses de idade, é um estafermo, nem mesm existe, é desprezado (30 linhas) pela entidade distribuidora, suicidou-se.
Acabam as 30 linhas.
Aqui devia pôr-se "Espera deferimento", mas não espera nada o
Fernando
ABEL
28.9.29
Fernando Pessoa a Ofélia Queirós

terça-feira, 12 de junho de 2007

RECUSA
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I
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É muito possível durante os primeiros meses
uma importante viagem à Asia- essa
é uma das consequências
secretas
em que não se tomaram quaisquer resoluções finais
e ambas chegaram igualmente.
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II
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ainda um céu marinho de agonia onde eu
sou um copo de aguardente francesa e tu
uma gaivota que passa rente ao barco que me leva
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III
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- Eu sou uma coisa qualquer
Eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER
- eu sou uma cidade
- eu sou uma errata
- onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
- onde está Deus deve ler-se o Diabo
- onde está o Amor deve estar o Grande Amor
Mágico Amor Meu
- onde estou Eu deves estar Tu
- onde estão os lábios da nossa vida
uma porta secreta minúscula
O-AMOR
MEU AMOR

segunda-feira, 11 de junho de 2007



Canção da Manhã

como os estranhos pássaros nascidos em tua boca

como os rios que te correm entre os olhos

como as esmeraldas que formam as asas dos teus ombros

como os longos ramos da árvore do sono do teu braço

como o grande espaço em que teu corpo repousa

deitado na tua própria mão

como a tua sombra idêntica à nuvem

que se encontra com o mar

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assim é a presença que de ti tenho

nas noites em que o fogo se acende

nas montanhas longínquas e fulgurantes

quando os meus passos me projectam

para os mais elevados cumes solitários

quando o sangue canta

através do aço vibrante do meu corpo

levando-me ao longo do caminho de flores rubras

que tu plantaste

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assim é o desejo de te encontrar

nascida nas minhas mãos

erguida como torre duma catedral perdida

envolta na minha boca

caminhando comigo

pela estrada que nossos pés abrirão triunfantes

Mário-Henrique Leiria




domingo, 10 de junho de 2007




Cantiga

a este moto alheio:


Verdes são os campos

de cor do limão:

assi são os olhos

do meu coração.


Voltas


Campo, que te estendes

com verdura bela;

ovelhas que nela

vosso pasto tendes;

d'ervas vos mantendes

que traz o Verão,

e eu das lembranças

do meu coração.

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Gado, que pasceis,

co contentamento,

vosso mantimento

não no entendeis:

isso que comeis

não são ervas, não:

são graças dos olhos

do meu coração.

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Luís Vaz de Camões

Os Lusíadas - digitalizados na BN








sexta-feira, 8 de junho de 2007








Vestígios

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Noutros tempos
quando acreditavamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenámo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas- noutros tempos
os dias corriaam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
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hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool- pernoita-se
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onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
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apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial

quinta-feira, 7 de junho de 2007

7 de Junho: Nascimento de Gauguin


Gauguin ( 1848-1903 )




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MOVIMENTO
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O zig-zag na escarpa sobre as cataratas do rio,
O turbilhão no cadaste,
A celeridade da rampa
O enorme colume da corrente,
Levam sob a luz inaudita
E a surpresa química
Os viajantes cercados pelas trombas do vale
e do som.


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São os conquistadores do mundo
Em busca da fortuna química pessoal;
Desporto e conforto viajam com eles;
vai com eles a educação
Das raças, das classes e dos bichos, sobre este barco
Repouso e vertigem
Na luz diluviana,
Nas terríveis tardes de estudo.


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Pois das conversas entre os aparelhos, o sangue, as flores o fogo, as
jóias,
Dos cálculos ansiosos deste barco fugitivo,
- Vemos, rolando como um dique frente à roda hidráulica motora,
Monstruoso, iluminando-se sem fim, - o seu stock de estudos;
Imersos no êxtase harmónico,
E no heroísmo da descoberta.

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Ante os mais surpreendentes acidentes atmosféricos,
Um par jovem isola-se na arca
- Antiga selvajaria consentida? -
E coloca-se e canta.





quarta-feira, 6 de junho de 2007

O Visionário ou Som e Cor
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Alucina-me a Cor! - a Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.
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se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira,
A teatral camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes no ar, perpassa a nota alada
como a perdida cor de alguma flor que expira...
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Há plantas ideais de um cântico divino,
Irmãs do oboé, gémeas do violino,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim...
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A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- Tem notas macias, soa como um clarim.
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terça-feira, 5 de junho de 2007

Paula Rego



HIEMAL



Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descritos...

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E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas, e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...

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E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hienais
E caladas...

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Todas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...

Fernando Pessoa







Paula Rego

segunda-feira, 4 de junho de 2007



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ANATOMY OF LOVE - Paula Rego

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O VERMELHO POR DENTRO
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Estão envolvidos em corpos negros vermelhos por
dentro. Estão num barco sobre o mar e o mar é
negro. É de noite. O céu está negro e sobre a
água negra tudo é vermelho por dentro.
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Os corpos eram negros
sobre o mar a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com os ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes
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A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia
tudo envolvia nos vermelhos dentros
e os mares todas as noites estavam negros
negros por dentro
E a água volvia pelo céu tão negra
e à noite por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos a água negra era vermelha por dentro
e eles estavam envolvidos

sexta-feira, 1 de junho de 2007

A Criança e a Lua
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A lua e a criança jogam
um jogo que ninguém vê;
sem olhar veêm-se, falam
uma língua de pura mudez.
O que diozem, ou ocultam,
a contar um, dois, três,
ou três, dois, um
para voltar a contar?
Quem ficou dentro do espelho,
lua, para tudo ver?
A criança está feliz e só:
a lua roça os seus pés
como a neve na madrugada,
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como o azul do amanhecer;
nas duas faces do mundo
- a que ouve, e a que vê -
cindiu-se o silêncio,
a luz cintila no outro lado
das mãos, que seguem a procurar quem sabe o quê
no instante de ninguèm
que passa onde jamais foi.
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A criança existe e joga
um jogo que ninguém vê.