terça-feira, 22 de maio de 2007

22 de Maio: Dia do Autor Português

Quadro de Menez


Pequena Indústria

Houve um tempo em que eu não sabia fazer versos. Mas é claro que já sentia tudo o que hoje sinto. Até que apareceu à porta do liceu o jorge, de calças à golf e boné de jockey. Vinha de longe, do sul e trazia consigo, nos seus dez anos, conhecimentos que o impunham a meus olhos como digno de admiração, esse sentimento que ainda hoje tributo a muito poucos. Sabia por exemplo imenso de mitologia grega, quando nós só começávamos a saber que a terra não era redonda e acabávamos talvez de ver no cinema o sargento imortal. Eu experimentava as coisas e gostaria de as escrever e não era capaz. Contava então tudo ao jorge. O jorge sabia fazer versos. Um dia vim apaixonado das ómnias, a quinta onde toda a gente de jantarém ia dançar no dia de s.josé. Amor de perdição, amor único, como aliás os outros vinte e tal dos anos de rapaz. Contei tudo ao jorge. E o jorge escreveu-me, sentado num banco do jardim da república, que não tinha grades para dar maior encanto à passagem das raparigas para o liceu, uns versos em tinta verde, de que já me esqueci. Só me lembro que, dentro do ambiente de perdição e de fatalidade que o tema exigia, «ómnias» rimava com «insónias».

Até que passei a fazer um esforço e a escrever os meus próprios versos. Escrevia o que sentia e ainda hoje, muitos anos volvidos, guardo toda essa vasta produção na gaveta. Depois deixei de sentir coisa alguma e continuei a escrever. Publiquei então o primeiro livro. Acabava de montar a minha pequena indústria em nome individual. O jorge estudou medicina, é médico, tem três filhas e não faz versos. Sou padrinho de uma das filhas.

Ruy Belo in Homem de Palavra[s]

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