quarta-feira, 30 de julho de 2008

O POETA CHORAVA...
O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
nelas buscava Uma estrela   talvez a salvação?
O poeta era sinceríssimo
honesto
total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões



E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva



Tirai-lhe agora os poemas que ele próprio despreza
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA DESTROI-VOS

Mário Cesariny

terça-feira, 29 de julho de 2008

Vem, serenidade! Vem cobrir a longa fadiga dos homens, este antigo desejo de nunca ser feliz a não ser pela dupla humidade das bocas. Vem, serenidade! faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros e com que os ombros subam à altura dos lábios, faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos. Raul de Carvalho

segunda-feira, 28 de julho de 2008

JÚPITER

Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, portanto, sem repardes que existis... ... Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Fernando Pessoa

sexta-feira, 25 de julho de 2008

No mistério do sem-fim equilibra-se um planeta. E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro; no canteiro uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro, entre o planeta e o sem-fim, a asa de uma borboleta Cecília Meireles

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Eu que sou feio, sólido, leal, A ti, que és bela, frágil, assustada, Quero estimar-te, sempre, recatada Numa existência honesta, de cristal. Sentado à mesa de um café devasso, Ao avistar-te, há pouco fraca e loura, Nesta babel tão velha e corruptora, Tive tenções de oferecer-te o braço. E, quando socorrestes um miserável, Eu, que bebia cálices de absinto, Mandei ir a garrafa, porque sinto Que me tornas prestante, bom, sudável. «Ela aí vem!» disse eu para os demais; E pus me a olhar, vexado e suspirando, O teu corpo que pulsa, alegre e brando, Na frescura dos linhos matinais. Via-te pela porta envidraçada; E invejava, - talvez que não o suspeites! - Esse vestido simples, sem enfeites, Nessa cintura tenra, imaculada. ... Soberbo dia! Impunha-me respeito A limpidez do teu semblante grego; E uma família, um ninho de sossego, Desejava beijar o teu peito. Com elegância e sem ostentação, Atravessavas branca, esbelta e fina, Uma chusma de padres de batina, E de altos funcionários da nação. «Mas se a atropela o povo turbulento! Se fosse, por acaso, ali pisada!» De repente, parastes embaraçada Ao pé de um numeroso ajuntamento, E eu, que urdia estes frágeis esbocetos, Julguei ver, com a vista de poeta, Um pombinha tímida e quieta Num bando ameaçador de corvos pretos. E foi, então que eu, homem varonil, Quis dedicar-te a minha pobre vida, A ti, que és ténue, dócil, recolhida, Eu, que sou hábil, prático, viril. Cesário Verde

domingo, 13 de julho de 2008

SEMELHANÇA
É ser quase invisível ser presente.
Na distância é que os astros aparecem;
E nas profundas trevas sepulcrais
É que podemos ver
Esta figura humana da Tragédia,
Esta máscara grega que faz medo
Aos deuses e aos demónios! Esta imagem
Acendida de cores palpitantes,
Além das quais se escondem num tumulto,
Outras vagas imagens, pretendendo
Vencer e dominar, romper a névoa,
Surgir à luz do dia!
                        Só nas trevas,
Se ilumina a expressão das criaturas,
Como um céu nocturno, Ó lua nova,
O teu perfil de prata que me lembra
O perfil de Virgílio a revelar-se
Na morta escuridão de dois mil anos.

É nas trevas que as almas aparecem.
E a sua face externa, dimanando
Este ar humano a arder em luz divina
Ou toldado de fumo enegrecido:
O relevo mais alto
Dum rosto que se anima, aquele traço
Que melhor o define, aquele modo
De olhar e de falar, aquele riso
Ou de anjo ou de demónio;
Este ar inconfundível e perpétuo
Que trouxemos do ventre maternal.
Fulgura na beleza amanhecente
E conserva acendida, entre as ruínas
Da trágica velhice,
A monótona lâmpada soturna,
Em melancólicos lampejos frios.
E inalterável paira sobre a face
Gelada dos cadáveres.. .
E dela se desprende; e, já liberto,
Em vulto de fantasma,
Fica, por todo o sempre, a divagar
Entre o luar e a noite, o Céu e a Terra.
                      II
O génio dum pintor
É dar as cousas como Deus as fez
E como Deus, sonhando, as concebeu,
Bem antes de as criar. É dar o sol
E a sombra original que lhe embrandece
O ímpeto doirado a desfazer-se,
Em luminosa espuma, sobre o mundo.
É dar a um rosto humano a forma viva,
A claridade viva que ele trouxe
Do ventre maternal...
Esta anímica luz de simpatia
Que se exala, no ar, e vem de dentro
Dum coração a arder:
A nossa própria imagem condensando,
Através da aparência transitória,
A eterna aparição.
                       III
A tinta dá a aparência deslumbrante,
A luz carnal que veste os ossos do esqueleto
E em nós acende uma ilusão de vida,
Um desejo de ser quase infinito,
Um sonho de existir eternamente...
Este sonho divino que nos leva
Nas suas ígneas asas sempre abertas
No coração da noite.
Para onde vamos nós? Para onde vai
A perfeita alegria que se apaga,
E nos deixa na alma
Como um sabor a cinza?
E no silêncio que vem da serra com a lua
E passeia comigo no jardim?
E o perfume das rosas e dos lirios
Que derramam, na sombra, bem se vê,
Fosforescências brancas e vermelhas,
Quando o luar é mármore desfeito
A cair, a cair, em luminoso pó?
Cai na terra que tem defunta palidez,
Sorrisos mortos, lágrimas de neve,
Pedrinhas preciosas que cintilam
E negras manchas de terror, fingindo
O recorte das árvores extáticas.

A tinta dá a aparência radiosa;
Um arco-íris nas paletas,
E a alegria da virgem Primavera
E o sangue que ilumina a tua face
E é como a aurora a percorrer-te as veias
E dos teus lábios foge, num sorriso...

Mas o carvão dá a noite, a intimidade, a alma,
Os recantos escuros da paisagem,
Onde o mistério e a sombra
Parecem adquirir uma presença vaga...
E extrai do alvor luarento do papel
O fantasma escondido, em nós, durante a vida,
Mas cá fora, ao luar, depois da nossa morte.

O óleo diurno lança num perfil
Todo o esplendor externo da expressão,
Este ar espiritual de etérea luz,
Que, emanando de dentro, se condensa
Em relevos de carne e sangue quente,
Donde se exala a dor em turbilhões de fumo
E a alegria agitando as luminosas asas.
Mas o carvão nocturno esboça a medo
A nossa intimidade, aquela imagem
Que em nosso coração se esconde e em certas horas,
De alto delírio e exaltação profunda,
Aparece, na Terra, em nosso nome,
Como um anjo de luz, como um demónio a arder!

Caim e Abel! Orfeu tangendo lira!
O grito de Jesus nas trevas do Calvário!
Lucrécio enlouquecido a escorraçar os Deuses
Para os confins do Olimpo...
E estrela do pastor que, à tarde, cintilava
Nos olhos de Virgílio, extáticas lagoas
Que reflectem a lua entre folhagens de árvore
E misteriosos perfis de espectros agoirentos.

Um retrato a carvão faz medo. Mostra à luz
Aquela negra sombra pavorosa
Que emite, para dentro, a criatura humana,
A fim de que ninguém a possa contemplar.. .
O segredo mais trágico das almas
A converter-se numa voz terrível,
Como um grito da Esfinge, no Deserto,
Que fizesse tremer o vulto das Pirâmides
E violentasse a tampa dos sepulcros,
Onde jazem os Deuses primitivos
E os primitivos Monstros que os poetas
E as entranhas da Terra conceberam.

Mas um retrato a óleo
É máscara pintada a tintas animadas,
Tão sensível de luz e de ternura
Que parece evolar-se num sorriso
E noutras claridades.
                        IV
O pintor surpreende a alma e o corpo,
A aparência da vida, a aparição da morte,
Mas não consegue dar o espírito divino,
O que somos além da morte e além da vida.
Só poderiam dar a imagem verdadeira 
Do espírito divino as tintas milagrosas
Extraídas daquele sol eterno
Que faz desabrochar as almas e as estrelas...
Daquele sol oculto em certos versos,
Nas palavras de Paulo e de Jesus,
Nos gritos de aflição, do amor e da saudade
Que, junto dum sepulcro ou berço consagrado,
Lançam as mães aos ventos do Infinito!

Somente em certos versos misteriosos
Dos grandes Poetas, brilha aquele sol
Que faz desabrochar as almas e as estrelas.

Teixeira de Pascoaes

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Laranja Cor de Sangue
Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos. 

Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.
Charles Simic

domingo, 6 de julho de 2008

Papoilas em julho
Pequenas papoilas, pequenas chamas infernais,
sois inofensivas?

Estremeceis. Não posso tocar-vos.
Ponho as minhas mãos por entre as chamas. Mas nada
                                    queima.

E fico exausta quando vos vejo
estremecer assim, pregueadas e rubras como a pele da
                                    boca.

Uma boca há pouco ensanguentada.
Pequenas orlas de sangue!

Há nela um fumo que não consigo tocar.
Onde está o vosso ópio, as vossas cápsulas nauseabundas?

Se eu pudesse esvair-me em sangue ou dormir!...
Se a minha boca conseguisse desposar uma tal ferida!

Ou os vossos licores me penetrassem, nesta cápsula de
                                     vidro,
trazendo-me a acalmia e o silêncio.

Mas sem cor. Sem nenhuma cor.


Sylvia Plath