quinta-feira, 24 de março de 2011

ÓPERA!...




Obsessão


Dentro de mim canta, intenso, 
Um cantar que não é meu: 
Cantar que ficou suspenso, 
Cantar que já se perdeu. 

Esta voz cantar assim? 
Já lhe perdi o sentido: 
Cantar que passa perdido, 
Que não é meu estando em mim. 

Depois, sonâmbulo, sonho: 
Um sonho lento, tristonho, 
De nuvens a esfiapar... 
E, novamente, no sonho 
Passa de novo o cantar... 

Sobre um lago, onde em sossego 
As águas olham o céu, 
Roça a asa de um morcego... 
E ao longe o cantar morreu. 

Onde teria eu ouvido 
Esta voz cantar assim? 
Já lhe perdi o sentido... 
E este cenário partido 
Volta a voltar, repetido, 
E o cantar recanta em mim. 

Francisco Bugalho, in "Margens"




Onde teria eu ouvido 

quarta-feira, 23 de março de 2011


Uma Gargalhada de Raparigas


Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 



segunda-feira, 21 de março de 2011

Pink overload!



Povoamento 

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera 

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates" 

domingo, 20 de março de 2011


 Não Quero, Cloe, teu Amor, que Oprime
 
Não quero, Cloe, teu amor, que oprime
            Porque me exige amor. Quero ser livre.

            A 'sperança é um dever do sentimento.

Ricardo Reis, in "Odes"


sexta-feira, 11 de março de 2011

São Carlos!!!


 

Quando não te Vejo Perco o Siso  

Formosura do Céu a nós descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;

Qual língua pode haver tão atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti há se vê perdida?

Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra um paraíso,
Logo o engenho me falta, o espírito míngua.

Mas o que mais me impede inda louvar-te,
É que quando te vejo perco a língua,
E quando não te vejo perco o siso.

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"


quinta-feira, 10 de março de 2011

 
Os Amigos
 
no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

Al Berto, in 'Sete Poemas do Regresso de Lázaro'


quarta-feira, 9 de março de 2011

Pink overload!


 

Há em Toda a Beleza uma Amargura  

Há em toda a beleza uma amargura
secreta e confundida que é latente
ambígua indecifrável duplamente
oculta a si e a quem na olhar obscura

Não fica igual aos vivos no que dura
e a não pode entender qualquer vivente
qual no cabelo orvalho ou brisa rente
quanto mais perto mais se desfigura

Ficando como Helena à luz do ocaso
a língua dos dois reinos nâo lhe é azo
senão de apartar tranças ofuscante

Mas à tua beleza não foi dado
qual morte a abrir teu juvenil estado
crescer e nomear-se em cada instante?

Walter Benjamin, in "Sonetos"
Tradução de Vasco Graça Moura



terça-feira, 8 de março de 2011



O Êxito Parece a Mais Doce das Coisas  
O êxito parece a mais doce das coisas
A quem nunca venceu na vida.
Ter a compreensão de um néctar
Exige a mais dolorosa necessidade.

De entre o purpúreo Exército
Que hoje empunhou a Bandeira
Nenhum outro poderá dar uma tão clara
Definição da Vitória

Como o vencido - agonizante -
Em cujo ouvido interdito
A distante ária triunfal
Ressoa nítida e pungente!

Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice

Pink overload!


segunda-feira, 7 de março de 2011

 

Imagens que Passais pela Retina 
 
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
_ Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
_ O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
_ Estranha sombra em movimentos vãos.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'