domingo, 28 de fevereiro de 2010

parentfail.com Proof that certain people just shouldn't be allowed to procreate
 

Sou 

Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.

Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"


 

sábado, 27 de fevereiro de 2010

 

Melhor Vida é a Vida que Dura sem Medir-se  

Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
          Ignorar que vivemos
          Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
          Quando passa conosco,
          Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
          Melhor vida é a vida
          Que dura sem medir-se.

Ricardo Reis, in "Odes"



 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
 

 

Génio do Mal  

Gostavas de tragar o universo inteiro,
Mulher impura e cruel! Teu peito carniceiro,
Para se exercitar no jogo singular,
Por dia um coração precisa devorar.
Os teus olhos, a arder, lembram as gambiarras
Das barracas de feira, e prendem como garras;
Usam com insolência os filtros infernais,
Levando a perdição às almas dos mortais.

Ó monstro surdo e cego, em maldades fecundo!
Engenho salutar, que exaure o sangue do mundo
Tu não sentes pudor? o pejo não te invade?
Nenhum espelho há que te mostre a verdade?
A grandeza do mal, com que tu folgas tanto.
Nunca, jamais, te fez recuar com espanto
Quando a Natura-mãe, com um fim ignorado,
— Ó mulher infernal, rainha do Pecado! —
Vai recorrer a ti para um génio formar?

Ó grandeza de lama! ó ignomínia sem par.

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"


 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

 

Falas de Civilização, e de não Dever Ser
 
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"


domingo, 21 de fevereiro de 2010

 

Se Eu Pudesse Trincar a Terra Toda  

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXI"



 

sábado, 20 de fevereiro de 2010

 

A Felicidade é um Túnel                       

o domínio
o erotismo do domínio
                      do domínio irrisório
                                                mas enorme

submeter
ver tremer
ver o tremor do outro

                     vencer
                                  o gelo
                                  o desdém
                                                   veloz

a felicidade é um túnel

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"


 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

House searching - Day 2 : |



A Morte o Amor a Vida  

Julguei que podia quebrar a profundeza a
                                                               [imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue

Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro
                                                             [nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula

Tu vieste o fogo então reanimou-se
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de
                                                                      [estrelas
E a terra cobriu-se
Da tua carne clara e eu senti-me leve
Vieste a solidão fora vencida
Eu tinha um guia na terra
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido
Avançava ganhava espaço e tempo
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente
                                                                     [para a luz
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava
                                                               [as suas velas
O sono transbordava de sonhos e a noite
Prometia à aurora olhares confiantes
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos
O repouso deslumbrado substituía a fadiga
E eu adorava o amor como nos meus primeiros
                                                                         [tempos

Os campos estão lavrados as fábricas irradiam
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas
Nada é simples nem singular
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite

A floresta dá segurança às árvores
E as paredes das casas têm uma pele comum
E as estradas cruzam-se sempre
Os homens nasceram para se entenderem
Para se compreenderem para se amarem
Têm filhos que se tornarão pais dos homens
Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens
E a natureza e a sua pátria
A de todos os homens
A de todos os tempos.

Paul Eluard, in "Algumas das Palavras"



segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

House searching - Day 1 : )

 

No Ciclo Eterno das Mudáveis Coisas  

No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.

Ricardo Reis, in "Odes"