segunda-feira, 26 de abril de 2010

Liberdade Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não fazer! Ler é maçada, Estudar é nada. Sol doira Sem literatura O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como o tempo não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D.Sebastião, Quer venha ou não! Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca. Mais que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca... Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quarta-feira, 21 de abril de 2010

E à Arte o Mundo Cria Seguro Assento na coluna firme Dos versos em que fico, Nem temo o influxo inúmero futuro Dos tempos e do olvido; Que a mente, quando, fixa, em si contempla Os reflexos do mundo, Deles se plasma torna, e à arte o mundo Cria, que não a mente. Assim na placa o externo instante grava Seu ser, durando nela. Ricardo Reis, in "Odes"

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Do Sentimento Trágico da Vida Não há revolta no homem que se revolta calçado. O que nele se revolta é apenas um bocado que dentro fica agarrado à tábua da teoria. Aquilo que nele mente e parte em filosofia é porventura a semente do fruto que nele nasce e a sede não lhe alivia. Revolta é ter-se nascido sem descobrir o sentido do que nos há-de matar. Rebeldia é o que põe na nossa mão um punhal para vibrar naquela morte que nos mata devagar. E só depois de informado só depois de esclarecido rebelde nu e deitado ironia de saber o que só então se sabe e não se pode contar. Natália Correia, in "Poemas (1955)"

terça-feira, 13 de abril de 2010

Da Tua Vida Da tua vida o que não podem entender Nem oiro nem poder nem segurança Mas a paixão do Tempo e de seus riscos Tu buscaste o instante e a intensidade E foste do combate e da mudança Por isso um rastro de ruptura e de viagem Ou talvez este fogo inconquistado Como breve eternidade De passagem Manuel Alegre, in "Chegar Aqui"

sábado, 10 de abril de 2010

Balada do Poema que não Há Quero escrever um poema Um poema não sei de quê Que venha todo vermelho Que venha todo de negro Às de copas às de espadas Quero escrever um poema Como de sortes cruzadas Quero escrever um poema Como quem escreve o momento Cheiro de terra molhada Abril com chuva por dentro E este ramo de alfazema Por sobre a tua almofada Quero escrever um poema Que seja de tudo ou nada Um poema não sei de quê Que traga a notícia louca Da história que ninguém crê Ou esta afta na boca Esta noite sem sentido Coisa pouca coisa pouca Tão aquém do pressentido Que me dói não sei porquê Quero um poema ao contrário Deste estado que padeço Meu cavalo solitário A cavalgar no avesso De um verso que não conheço Que venha de capa e espada Ou de chicote na mão Sobre esta noite acordada Quero um poema noitada Um poema até mais não Quero um poema que diga Que nada há que dizer Senão que a noite castiga Quem procura uma cantiga Que não é de adormecer Poema de amor e morte No reino da Dinamarca Ser ou não ser eis a sorte O resto é silêncio e dor Poema que traga a marca Do Castelo de Elsenor Quero o poema que me dê Aquela música antiga Da Provença e da Toscânia Vinho velho de Chianti Com Ezra Pound em Rapallo E versos de Cavalcanti Ou Guilherme de Aquitânia Dormindo sobre um cavalo E com ele então dizer O meu poema está feito Não sei de quê nem sobre quê Dormindo sobre um cavalo Quero o poema perfeito Que ninguém há-de escrever Que ele traga a estrela negra Do canto e da solidão Ou aquela toutinegra De Camões quando escrevia Sôbolos rios que vão Que venha como um destino Às de copas às de espadas Que venha para viver Que venha para morrer Se tiver que ser será E não há cartas marcadas Só assim poderá ser O poema que não há Manuel Alegre, in "Babilónia"

domingo, 4 de abril de 2010

Primavera
O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro. A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p'la fonte. Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa... porque Deus é bom e perdôa tudo... e depois as faces e depois a bocca e depois... fugiu... Não devia ter fugido... E agora o moleiro, lá no arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda - sentada na grande arca, e mãos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpête, emquanto ouve a historia triste do moinho com cincoenta malfeitores... Quer lembrar-se mais, que seja peccado! quer mais recordações do moinho, mas não encontra mais. Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ella e lhe perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito, uma borboleta muito bonita! Que não, que não tinha visto; mas o boieiro desconfiado foi procurando sempre, e até mesmo por debaixo dos vestidos. Como desejava poder ir com todos! Não sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar. Teria a borbolêta branca fugido para dentro d'ella?
Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'

sábado, 3 de abril de 2010