sexta-feira, 31 de julho de 2009

Em cada cidade
Em cada cidade há crianças
Em cada cidade há brinquedos
Em cada casa há pequenos prazeres da mesa
O trabalho da casa
Lavar e reparar
A tranquilidade à noite
E alimentar as crianças
Um a dar ao outro tudo o que precisa
Um dia isto muda e nada é dado
Tudo o que é de vestir e comer é comprado como um bilhete para
lugar algum
Para viver o dinheiro é necessário
Mas onde há dinheiro todas as coisas podem ser compradas e
vendidas
Amaldiçoa a fidelidade a verdade e o trabalho
O tecto da viúva e a porta do homem pobre
E morte
Em cada cidade há dinheiro
Em cada cidade existem armas
Em cada moeda existe vida e morte
E quem pode dizer o seu valor?

Edward Bond

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O Verão por cá - O regresso: comprar comida decente!

Pequeno-almoço no deserto

Semelhança
É ser quase invisível ser presente.
Na distância é que os astros aparecem;
E nas profundas trevas sepulcrais
É que podemos ver
Esta figura humana da Tragédia,
Esta máscara grega que faz medo
Aos deuses e aos demónios! Esta imagem
Acendida de cores palpitantes,
Além das quais se escondem num tumulto,
Outras vagas imagens, pretendendo
Vencer e dominar, romper a névoa,
Surgir à luz do dia!
                    Só nas trevas,
Se ilumina a expressão das criaturas,
Como um céu nocturno, Ó lua nova,
O teu perfil de prata que me lembra
O perfil de Virgílio a revelar-se
Na morta escuridão de dois mil anos.

É nas trevas que as almas aparecem.
E a sua face externa, dimanando
Este ar humano a arder em luz divina
Ou toldado de fumo enegrecido:
O relevo mais alto
Dum rosto que se anima, aquele traço
Que melhor o define, aquele modo
De olhar e de falar, aquele riso
Ou de anjo ou de demónio;
Este ar inconfundível e perpétuo
Que trouxemos do ventre maternal.
Fulgura na beleza amanhecente
E conserva acendida, entre as ruínas
Da trágica velhice,
A monótona lâmpada soturna,
Em melancólicos lampejos frios.
E inalterável paira sobre a face
Gelada dos cadáveres.. .
E dela se desprende; e, já liberto,
Em vulto de fantasma,
Fica, por todo o sempre, a divagar
Entre o luar e a noite, o Céu e a Terra.
                      II
O génio dum pintor
É dar as cousas como Deus as fez
E como Deus, sonhando, as concebeu,
Bem antes de as criar. É dar o sol
E a sombra original que lhe embrandece
O ímpeto doirado a desfazer-se,
Em luminosa espuma, sobre o mundo.
É dar a um rosto humano a forma viva,
A claridade viva que ele trouxe
Do ventre maternal...
Esta anímica luz de simpatia
Que se exala, no ar, e vem de dentro
Dum coração a arder:
A nossa própria imagem condensando,
Através da aparência transitória,
A eterna aparição.
                       III
A tinta dá a aparência deslumbrante,
A luz carnal que veste os ossos do esqueleto
E em nós acende uma ilusão de vida,
Um desejo de ser quase infinito,
Um sonho de existir eternamente...
Este sonho divino que nos leva
Nas suas ígneas asas sempre abertas
No coração da noite.
Para onde vamos nós? Para onde vai
A perfeita alegria que se apaga,
E nos deixa na alma
Como um sabor a cinza?
E no silêncio que vem da serra com a lua
E passeia comigo no jardim?
E o perfume das rosas e dos lírios
Que derramam, na sombra, bem se vê,
Fosforescências brancas e vermelhas,
Quando o luar é mármore desfeito
A cair, a cair, em luminoso pó?
Cai na terra que tem defunta palidez,
Sorrisos mortos, lágrimas de neve,
Pedrinhas preciosas que cintilam
E negras manchas de terror, fingindo
O recorte das árvores extáticas.

A tinta dá a aparência radiosa;
Um arco-íris nas paletas,
E a alegria da virgem Primavera
E o sangue que ilumina a tua face
E é como a aurora a percorrer-te as veias
E dos teus lábios foge, num sorriso...

Mas o carvão dá a noite, a intimidade, a alma,
Os recantos escuros da paisagem,
Onde o mistério e a sombra
Parecem adquirir uma presença vaga...
E extrai do alvor luarento do papel
O fantasma escondido, em nós, durante a vida,
Mas cá fora, ao luar, depois da nossa morte.

O óleo diurno lança num perfil
Todo o esplendor externo da expressão,
Este ar espiritual de etérea luz,
Que, emanando de dentro, se condensa
Em relevos de carne e sangue quente,
Donde se exala a dor em turbilhões de fumo
E a alegria agitando as luminosas asas.
Mas o carvão nocturno esboça a medo
A nossa intimidade, aquela imagem
Que em nosso coração se esconde e em certas horas,
De alto delírio e exaltação profunda,
Aparece, na Terra, em nosso nome,
Como um anjo de luz, como um demónio a arder!

Caim e Abel! Orfeu tangendo lira!
O grito de Jesus nas trevas do Calvário!
Lucrécio enlouquecido a escorraçar os Deuses
Para os confins do Olimpo...
E estrela do pastor que, à tarde, cintilava
Nos olhos de Virgílio, extáticas lagoas
Que reflectem a lua entre folhagens de árvore
E misteriosos perfis de espectros agoirentos.

Um retrato a carvão faz medo. Mostra à luz
Aquela negra sombra pavorosa
Que emite, para dentro, a criatura humana,
A fim de que ninguém a possa contemplar.. .
O segredo mais trágico das almas
A converter-se numa voz terrível,
Como um grito da Esfinge, no Deserto,
Que fizesse tremer o vulto das Pirâmides
E violentasse a tampa dos sepulcros,
Onde jazem os Deuses primitivos
E os primitivos Monstros que os poetas
E as entranhas da Terra conceberam.

Mas um retrato a óleo
É máscara pintada a tintas animadas,
Tão sensível de luz e de ternura
Que parece evolar-se num sorriso
E noutras claridades.
                        IV
O pintor surpreende a alma e o corpo,
A aparência da vida, a aparição da morte,
Mas não consegue dar o espírito divino,
O que somos além da morte e além da vida.
Só poderiam dar a imagem verdadeira
Do espírito divino as tintas milagrosas
Extraídas daquele sol eterno
Que faz desabrochar as almas e as estrelas...
Daquele sol oculto em certos versos,
Nas palavras de Paulo e de Jesus,
Nos gritos de aflição, do amor e da saudade
Que, junto dum sepulcro ou berço consagrado,
Lançam as mães aos ventos do Infinito!

Somente em certos versos misteriosos
Dos grandes Poetas, brilha aquele sol
Que faz desabrochar as almas e as estrelas.


Teixeira de Pascoaes

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Voltar à cidade!

"Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade...

"Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura."

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

"Sou do tamanho do que vejo!"Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer."

Bernardo Soares in "O Livro do Desassossego"

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Hello Kitty: everything!... W.C.

Deixar a casa limpa!

O Verão por aqui: o chafariz da minha rua

"Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento.

Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.

Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo."

Bernardo Soares in " O Livro do Desassossego"