Eram uma vez duas e um quarto da manhã à porta do dancing «o Canário».
Pela Cidade ia conspiração, de luz acesa e janela aberta, tudo euforia de civis de civismo e baixas patentes descomandáveis. E eu vinha duma sessão dessa música. Horas longas de tabaco e copos de água inúteis, que me traziam ensopado em fúrias lentas. Por isso, a finais de reunião, entrara pensando «O Canário» com intensidades de arrastar comigo um subversor muito alto e magro.
Ele suava nome, Sancho. E porque era enorme e quase famigerado avançou adiante. Entrámos como um iate de escaler à arreata.
Sentados no bar, o Sancho encolheu o nariz.
«Loca de burgueses», disse. Mas sorria e afagava-me um ombro. Talvez para lembrar que,
de sua ideia expressa minutos antes, tínhamos noite ganha. O que, na minha inconfessa, significava irmos perder comboios sucessivos de qualquer mudança válida nos ritmos de ser gente e em País.
Eu pus olhar a farejar a sala até que parou de pata no ar. Peguei no copo e saltei do bar sem prevenir o Sancho por coisa diferente dum sorriso manso.
Fui sentar-me, grupo descortinado num recanto, e perguntei dez coisas para meter no meio delas «Onde pára a Zana?». «Olhe-a», disse um rapaz pintor.
Havia mesmo ao pé da nossa mesa um par em dança lenta, e era ela. Nunca eu viria a saber qual homem segurava tal mulher. Dois segundos depois de a ter olhado viu-me, e sorriu-se em contraponto.
Estou sentado num dancing e tenho a mão ainda em volta de uma bebida de pressão de ar.
Às vezes, acontece num sítio destes e em hora assim que o pecado original se derreteu num shaker, acabando-se a mortalidade infantil e a Polícia. Sinto essa harmonia. Por cima dos ombros cansados, como um xaile de leveza dum suspiro de gato. Pelas luzes das mesas e fumo nos olhos
trotam as mais certeiras notas de piano.
Ando a treinar-me para conspirador, e até deixei um Sancho no bengaleiro. Permitam-me, porém: que arregace outro género de mangas e talvez a minha noite não morra sem uma pitada de seriedade.
Há exactamente dez segundos que perguntei dez coisas. Ouvi então um homem de pincéis que me disse «Olhe-a», e atingiu ao fazê-lo a sua razão, de ter nascido, crescido e hesitado, pintadamente. A partir desse instante em que me disse «Olhe-a» (com a autoridade de ser pessoa viva, que pintava) a missão dele no mundo, pareceu-me, atingiu o fim. E eu sorri das telas todas que porventura ainda pintaria. Tal os anjos, à gargalhada por cada dinossauro nado após a Evolução ter decidido despedir esse bicho.
Com os olhos na mulher encosto-me aos acordes do pianista Epaminondas, como quem se apoia às cordas dum ringue. Ela vê-me e nem me deixa o tempo de pensar: começa sorrindo, em contraponto.
Larga imediatamente o tipo - «estou cansada» - e vai sentar-se sem olhar. Sem me deter, toco-lhe dois dedos num ombro - «Olá Zana» -; e através da sala até chegar de novo ao bar.
Que saí daquela mesa para outra faina senão sentar-me outra vez chez Sancho: nenhum dos circunstantes adivinharia.
Portanto, uma fracção de tempo em que ela sorriu. Em contraponto. Fenómeno andor de procissão. Tambores que o precederam e fanfarras ladeantes merecem narração, é certo. E mais merecem, se possível: escrita. Tempo e trabalho, inevitavelmente; pois se trata de numerosa coisa e muita gente, e agitada. Milhões, assim por alto. Mas tudo isso periclita como um universo de loiça das Caldas; que se escaqueirará ou (o que seria pior) permanecerá cristalizado - e portanto ridículo se não localizarmos desde o início o ponto estratégico que legaliza o facto de eu estar escrevendo: um sorriso; que me atravessou o amor próprio como um torpedo varando em plena noite um paquete de luxo iluminado; e que ficou sendo para sempre e desde sempre o lugar geométrico dos meus dias sem nome. Ali, numa escassa fracção de tempo, perdi-me e reencontrei-me logo, cabelo doutra cor e roupa até então desconhecida.
Mais do que morrermos todos, custa-me a dificuldade de dar forma escrita ao que acabei uma vez mais de rabiscar: que, sentado no bar e novamente ao lado do Sancho, comecei então a desesperada carreira de impotência que tem sido a minha. Assinalada por revoadas de páginas escritas mentalmente, humilhação raivosa de Filipe arremessando esquadras tantas às canelas duma Inglaterra impermeável.
Pedi um vodka, temendo de antemão quanto me poderia suceder: viverei até ao fim de mim rondando um sorriso símbolo? Como um alcoólico sem tustas, do lado de fora do local onde se bebe? Mas entrar escrevendo. Nada mais.
Querida Zana:
Estou sentado numa esplanada de Azeitão. O que não é de todo irreverente, se considerarmos como o tempo mexe.
Há cinquenta e sete mil e quinhentos lustros que ficaste morta: de Norte a Sul e Leste e Oeste. O que - como adivinhas - perfaz uma cruz à escala natural e deixa uma certa parte de mim à vontade para se escrever. Pela primeira vez em tantos anos.
Poderia, até, dirigir-me a qualquer daqueles que então mais te rodeavam, nomeadamente os teus irmãos. E o incestuoso primo Jaime, o teu marido e outros miúdos mais crescidos. Havia nessa matulagem toda - ah, disso estou certíssimo - suficiente de ti para me bastar, nesta manhã com pó de Agosto meio antigo.
(Lembras-te de como te irritava a história do telefone? Quando eu marcava o número e respondia a Teresa. Eu falava com ela, quarto de hora, e desligava. Nem sempre quiseste aceitar a minha versão das coisas. Ora, nesse ponto só esta te podia esclarecer. Porque - e tanta vez to expliquei e tu a reguingar - a tua voz telefónica era um dos catorze espíritos que velavam o teu trono, o sorriso de que aqui tão imperfeitamente me ocupo. Queria lá saber que o motor humano desse som fosse às vezes a voz duma tua filha).
Jurei a mim mesmo acabar este trecho antes de me levantar daqui, exactamente porque estou com medo de sentir a caneta encolher-se numa nega, uma vez mais.
Vezes e vezes debati a hipótese de um sorriso significar, em contraponto. Concerto para nação e sorriso. Será isso, e possível?
Consultei historiadores, pugilistas, ligeiros pianistas, revolucionários orto e heterodoxos, algumas mulheres em meia-noites especiais. Coisa de estudar o assunto com a grande minúcia que ele merece. Não seria justo omitir que recorri também a certa gente muito ferida pela Terra, e que,
depois de convenientemente bem bebida, se torna imbatível na arte de abordar problemas insolúveis, passeando ao longo deles noites inteiras, de mãos atrás das costas e aquele ar solene e sensível de quem discute com a morte em frente do mar.
Não vou sequer resumir todas as baboseiras que aturei, esses falsos rumos temporários, minha investigação falhada.
A verdade está por desvendar, doutra maneira. Porque (lembro-me agora) o Sancho, ao sairmos de «O Canário» (onze minutos depois de nele termos entrado), me pediu que lhe pagasse o que eu bebera e que fora uma Sagres e um vodka polaco.
Ao entregar-lhe o dinheiro encontrei-me na rua e disse para o porteiro do dancing:
«Estou no topo dum cedro e vem aí um pintassilgo partir-me os olhos».
Foi a minha maneira quase rigorosa de informar o mundo. Parecia-me impossível ser-se mais feliz.
Nuno Bragança in A Noite e o Riso
Sem comentários:
Enviar um comentário