quinta-feira, 31 de maio de 2007

Escultura de João Cutileiro




E por vezes

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E por vezes as noites duram meses

E por vezes os meses oceanos

E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
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encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
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ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
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E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
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David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 30 de maio de 2007



O Gato


Lindo gato, vem cá, vem ao meu colo;
Encolhe as unhas dessa pata,
E deixa que eu mergulhe nos teus olhos,
Um misto de metal e ágata.
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Quando os meus dedos , à vontade, afagam
O dorso elástico, a cabeça,
E a mão se me enebria de prazer
No corpo eléctrico, a apalpá-lo,

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Vejo a minha mulher. O seu olhar,
Tal como o teu, querido animal,
Frio e profundo, fende-nos qual dardo,

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E da cabeça até aos pés
Um ar subtil, um perfume perigoso
Nadam em torno do seu corpo.

Charles Baudelaire in As Flores do Mal


terça-feira, 29 de maio de 2007



Se olhas a serpente nos olhos, sentes como a inocência
é insondável e o terror é um arrepio
lírico.Sabes tudo.
A constelação de corolas está madura contra o grito alto
nas voragens. Rosaceamente.
A tua vida entra em si mesma até ao centro.
Podes fechar os olhos, podes ouvir o que disseste
atrás das vozes
do poema.
Herberto Helder(1930) in Poesia Toda
Áudio de «Minha cabeça estremece» de Herberto Helder

segunda-feira, 28 de maio de 2007



ÍTACA

Não vale a pena suportar tanto castigo.
Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.
Onde quer que te encontres está contigo
dentro de ti em casa na distância
onde quer que procures há outro mar
Ítaca é a tua própria errância.
Manuel Alegre

sexta-feira, 25 de maio de 2007





To The Rose Upon The Rood Of Time
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Red Rose, proud Rose, sad Rose of all my days!
Come near me, while I sing the ancient ways:
Cuchulain battling with the bitter tide;
The Druid, grey, wood-nurtured, quiet-eyed,
Who cast round Fergus dreams, and ruin untold;
And thine own sadness, where of stars, grown old
In dancing silver-sandalled on the sea,
Sing in their high and lonely melody.
Come near, that no more blinded hy man's fate,
I find under the boughs of love and hate,
In all poor foolish things that live a day,
Eternal beauty wandering on her way.
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Come near, come near, come near - Ah, leave me still
A little space for the rose-breath to fill!
Lest I no more bear common things that crave;
The weak worm hiding down in its small cave,
The field-mouse running by me in the grass,
And heavy mortal hopes that toil and pass;
But seek alone to hear the strange things said
By God to the bright hearts of those long dead,
And learn to chaunt a tongue men do not know.
Come near; I would, before my time to go,
Sing of old Eire and the ancient ways:
Red Rose, proud Rose, sad Rose of all my days.
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À rosa na cruz do tempo
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Rosa vermelha, Rosa altiva, triste Rosa dos meus dias!
Aproxima-te, vem até mim, enquanto de outrora os tempos canto:
O de Cuchulain, em luta com a maré inclemente;
O do Druida sombrio, filho dos bosques, de olhos calmos,
Esse que alimentou os sonhos de Fergus e a indizível ruína;
É a tua tristeza o que antiquíssimas estrelas
Dançando com sandálias de prata sobre o mar,
Cantam em sua alta e solitária melodia.
Aproxima-te pois, agora que já não me cega o destino do homem,
E posso encontrar sob os ramos do amor e do ódio,
E nas mais simples coisas que vivem apenas um dia,
A eterna beleza errante, errando ainda.
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Aproxima-te, vem até mim, vem - Ah, deixa-me algum espaço
Que de seu hálito a rosa encha!
Que não seja eu quem não ouve o que implora;
O verme indefeso e oculto em seu pequeno esconderijo,
A ratazana que entre as ervas de mim foge,
E a terrível esperança mortal que labuta e morre;
Que seja eu quem ouve as estranhas coisas ditas
Por Deus aos luminosos corações dos mortos antigos,
E aprende essa língua que os homens ignoram.
Vem até mim; antes de partir queria o
Velho Eire cantar e cantar de outrora os tempos:
Rosa vermelha, Rosa altiva, triste Rosa dos meus dias.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

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O Sentimento dum ocidental

I
Ave Marias
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam um desejo absurdo de sofrer.
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O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-nos, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
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Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
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Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
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Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
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E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
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E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
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Num trem de praça arengam dois dentistas,
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
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Vazam-se os arsenais e as oficinas,
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
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Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
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Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
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II
Noite Fechada
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Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!
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E eu desconfio, até de um aneurisma
Tão mórbido me sinto,ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
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A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.
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Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela história eu me aventuro e alargo.
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Na parte que abateu no terremoto,
Muram-se as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
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Mas num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
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E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados,
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
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Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
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Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
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E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
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E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados;
Entro na brasserie; às mesas de emigrados
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
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III
Ao Gás
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E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
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Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
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As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
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Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
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E eu, que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
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Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
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Que grande cobra, a lúbrica pessoa
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre o luxo
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
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E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus meclemburgueses.
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Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
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Mas tudo cansa! Apagam-se, nas frentes,
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
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"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-nos sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!
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IV
Horas Mortas
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O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
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Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, ringem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
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E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
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Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
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Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
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Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
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Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir estrangulados.
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E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
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Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
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E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
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E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
Cesário Verde in O livro de Cesário Verde




quarta-feira, 23 de maio de 2007

Ezra Pound

Excerptos de Homenagem a Sextus Propertius

VII
Eu feliz, noite, noite cheia de brilho;
Ó leito feito feliz pelas minhas longas deleitações;
Quantas palavras ditas até ao fim com abundantes
[candeias;
Lutas quando as luzes foram retiradas;
Então, com desnudos seios, ela lutou contra mim,
A túnica aberta em desalinho;
E depois ela, abrindo os olhos que eu fechara no sono,
Os lábios dela sobre os meus olhos; e aa boca dela a dizer:
Madraço!
Em quantos e variados abraços, os nossos mutáveis
[braços,
Os seus beijos, tantos, pousando nos meus lábios.
«Não faças de Vénus um movimento cego,
Os olhos são os guias do amor,
Páris arrancou Helena nua do leito de Menelau,
O corpo nu do Endymion, isca brilhante para Diana»,
- pelo menos, esta é a história.
Enquanto os nossos destinos se entrelaçarem, sacia os
nossos olhos com amor;
Pois a longa noite cai sobre nós
e um dia em que o dia não retorna.
Que os deuses deitam sobre nós correntes
de modo a que nenhum dia nos desamarra
Louco é aquele que qqueria pôr fim à loucura do amor,
Porque o sol correrá com cavalos negros,
a terra extrairá trigo da cevada,
A corrente fluirá ao encontro da fonte
E antes que o coração conheça a moderação,
Os peixes nadarão em rios secos.
Não, agora enquanto possa ser, que o fruto da vida
[não cesse.
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terça-feira, 22 de maio de 2007

22 de Maio: Dia do Autor Português

Quadro de Menez


Pequena Indústria

Houve um tempo em que eu não sabia fazer versos. Mas é claro que já sentia tudo o que hoje sinto. Até que apareceu à porta do liceu o jorge, de calças à golf e boné de jockey. Vinha de longe, do sul e trazia consigo, nos seus dez anos, conhecimentos que o impunham a meus olhos como digno de admiração, esse sentimento que ainda hoje tributo a muito poucos. Sabia por exemplo imenso de mitologia grega, quando nós só começávamos a saber que a terra não era redonda e acabávamos talvez de ver no cinema o sargento imortal. Eu experimentava as coisas e gostaria de as escrever e não era capaz. Contava então tudo ao jorge. O jorge sabia fazer versos. Um dia vim apaixonado das ómnias, a quinta onde toda a gente de jantarém ia dançar no dia de s.josé. Amor de perdição, amor único, como aliás os outros vinte e tal dos anos de rapaz. Contei tudo ao jorge. E o jorge escreveu-me, sentado num banco do jardim da república, que não tinha grades para dar maior encanto à passagem das raparigas para o liceu, uns versos em tinta verde, de que já me esqueci. Só me lembro que, dentro do ambiente de perdição e de fatalidade que o tema exigia, «ómnias» rimava com «insónias».

Até que passei a fazer um esforço e a escrever os meus próprios versos. Escrevia o que sentia e ainda hoje, muitos anos volvidos, guardo toda essa vasta produção na gaveta. Depois deixei de sentir coisa alguma e continuei a escrever. Publiquei então o primeiro livro. Acabava de montar a minha pequena indústria em nome individual. O jorge estudou medicina, é médico, tem três filhas e não faz versos. Sou padrinho de uma das filhas.

Ruy Belo in Homem de Palavra[s]

segunda-feira, 21 de maio de 2007



Ars Magna

Devo ter corredores por onde ninguém passedevo ter um mar próprio e
olhos cintilantes
devo saber de cor o cetro e a espada
devo estar sempre pronto para ser rei e lutar
devo ter descobertas privativas implicando viagens ao grande imprevisto
de um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do teu peito o animal que
inanimado canta
devo ser Júlio César e Cleópatra a força do Dniepper e o carmim dos olhos
de El-Rei D.Dinis
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não
dia sim dia não
devo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos técnicas mais sérias prestígios
maiores
devo saber que és forte amplo transparente e colher-te murmúrio flébil aero-
lado
que eu arranco da luz que encharca o mundo
dia sim dia não dia sim dia não
devo portar-me bem à saída do teatro
devo tirar as chaves do universo
num passo ágil belo natural
e indiferente ao triunfo aos castigos aos medos
fitar unicamente, sob as luzes da cúpula, o voo tutelar da invisível armada.
Mário Cesariny in Manual de Prestigitação

sábado, 19 de maio de 2007

19 de Maio : Nascimento de Mário Sá Carneiro



Feminina


Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas «banquettes» dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.


Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro-
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins»-muito entretida.


Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguça-los ao espelho, antes de me deitar-
Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.


Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos-mesmo ao predilecto-
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher para me poder recusar...


(Paris, 15 de Fevereiro de 1916)


sexta-feira, 18 de maio de 2007



Possibilidades


Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me gostando dos homens em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas ao ridículo de não os escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas, que não me prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingênua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter objecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse, a outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo dos insectos ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade do ser ter a sua razão
Szymborska Wisława