terça-feira, 10 de agosto de 2010

10. Canção Vinde cá, meu tão certo secretário dos queixumes que sempre ando fazendo, papel, com que a pena desafogo! As sem-razões digamos que, vivendo, me faz o inexorável e contrário Destino, surdo a lágrimas e a rogo. Deitemos água pouca em muito fogo; acenda-se com gritos um tormento que a todas as memórias seja estranho. Digamos mal tamanho a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento, a quem já muitas vezes o contei, tanto debalde como o conto agora; mas, já que para errores fui nascido, vir este a ser um deles não duvido. Que, pois já de acertar estou tão fora, não me culpem também, se nisto errei. Sequer este refúgio só terei: falar e errar sem culpa, livremente. Triste quem de tão pouco está contente! Já me desenganei que de queixar-me não se alcança remédio; mas, quem pena, forçado lhe é gritar, se a dor é grande. Gritarei; mas é débil e pequena a voz para poder desabafar-me, porque nem com gritar a dor se abrande. Quem me dará sequer que fora mande lágrimas e suspiros infinitos iguais ao mal que dentro n'alma mora? Mas quem pode algu'hora medir o mal com lágrimas ou gritos? Enfim, direi aquilo que me ensinam a ira, a mágoa, e delas a lembrança, que é outra dor por si, mais dura e firme. Chegai, desesperados, para ouvir-me, e fujam os que vivem de esperança ou aqueles que nela se imaginam, porque Amor e Fortuna determinam de lhe darem poder para entenderem, à medida dos males que tiverem. {Quando vim da materna sepultura de novo ao mundo, logo me fizeram Estrelas infelices obrigado; com ter livre alvedrio, mo não deram, que eu conheci mil vezes na ventura o milhor, e pior segui, forçado. E, para que o tormento conformado me dessem com a idade, quando abrisse inda minino, os olhos, brandamente, mandam que, diligente, um Minino sem olhos me ferisse. As lágrimas da infância já manavam com üa saudade namorada; o som dos gritos, que no berço dava, já como de suspiros me soava. Co a idade e Fado estava concertado; porque quando, por caso, me embalavam, se versos de Amor tristes me cantavam, logo m'adormecia a natureza, que tão conforme estava co a tristeza} Foi minha ama ua fera, que o destino não quis que mulher fosse a que tivesse tal nome para mim; nem a haveria. Assi criado fui, porque bebesse o veneno amoroso, de minino, que na maior idade beberia, e, por costume, não me mataria. Logo então vi a imagem e semelhança daquela humana fera tão fermosa, suave e venenosa, que me criou aos peitos da esperança; de que eu vi despois o original, que de todos os grandes desatinos faz a culpa soberba e soberana. Parece-me que tinha forma humana, mas cintilava espíritos divinos. Um meneio e presença tinha tal que se vangloriava todo o mal na vista dela; a sombra, co a viveza, excedia o poder da Natureza. Que género tão novo de tormento teve Amor, que não fosse, não somente provado em mim, mas todo executado? Implacáveis durezas, que o fervente desejo, que dá força ao pensamento, tinham de seu propósito abalado, e de se ver, corrido e injuriado; a qui, sombras fantásticas, trazidas de algüas temerárias esperanças; as bem-aventuranças nelas também pintadas e fingidas; mas a dor do desprezo recebido, que a fantasia me desatinava, estes enganos punha em desconcerto; aqui, o adevinhar e o ter por certo que era verdade quanto adevinhava, e logo o desdizer-me, de corrido; dar às cousas que via outro sentido, e para tudo, enfim, buscar razões; mas eram muitas mais as sem-razões. Não sei como sabia estar roubando cos raios as entranhas, que fugiam por ela, pelos olhos sutilmente! Pouco a pouco invencíveis me saiam, bem como do véu húmido exalando está o sutil humor o Sol ardente. Enfim, o gesto puro e transparente, para quem fica baixo e sem valia este nome de belo e de fermoso; o doce e piadoso mover de olhos, que as almas suspendia foram as ervas mágicas, que o Céu me fez beber; as quais, por longos anos, noutro ser me tiveram transformado, e tão contente de me ver trocado que as mágoas enganava cos enganos; e diante dos olhos punha o véu que me encobrisse o mal, que assi creceu, como quem com afagos se criava daquele para quem crecido estava]. Pois quem pode pintar a vida ausente, c om um descontentar-me quanto via, e aquele estar tão longe donde estava, o falar, sem saber o que dezia, andar, sem ver por onde, e juntamente suspirar sem saber que suspirava? Pois quando aquele mal me atormentava e aquela dor que das tartáreas águas saiu ao mundo, e mais que todas dói, que tantas vezes sói duas iras tornar em brandas mágoas; agora, co furor da mágoa irado, querer e não querer deixar de amar, e mudar noutra parte por vingança o desejo privado de esperança, que tão mal se podia já mudar; agora, a saudade do passado tormento, puro, doce e magoado, fazia converter estes furores em magoadas lágrimas de amores. Que desculpas comigo que buscava quando o suave Amor me não sofria culpa na cousa amada, e tão amada! Luís de Camões

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