terça-feira, 31 de março de 2009

Memória Consentida Neste lugar sem tempo nem memória, nesta luz absoluta ou absurda, ou só escuridão total, relances há em que creio, ou se me afigura, ter tido, alguma vez, passado com biografia, onde se misturam datas, nomes, caras, paisagens que, de tão rápidas, me deixam apenas a lembrança agoniada de não mais poder lembrá-las. Sobra, por vezes, um estilhaço ou fragmento, como o latido de um cão na tarde dolente e comprida de uma remota infância. Ou o indistinto murmúrio de vozes junto de um rio que, como as vozes, não existe já quando para ele volvo, surpreso, o olhar cansado. Insidiosas, rangem tábuas no soalho, ou é o sussurro brando do vento no zinco ondulado, na fronde umbrosa dos eucaliptos de perfil no horizonte, com o mar ao fundo. Que soalho, de que casa, que vento em que paragens, onde o mar ao longe que, entrevistos, os não vejo já ou, sequer, recordo na brevidade do instante cruel? De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem provêm tais sombras melancólicas, ferindo de indecifráveis avisos este lugar em que, não sendo consentido o coração, se não consentem tempo e memória? Pausa ou pena, a seu oculto propósito há-de sempre opor-se, lenta, a inexorável asfixia desta luz absurda, ou só escuridão total. Rui Knopfli in O Corpo de Atena

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