Semelhança
É ser quase invisível ser presente.
Na distância é que os astros aparecem;
E nas profundas trevas sepulcrais
É que podemos ver
Esta figura humana da Tragédia,
Esta máscara grega que faz medo
Aos deuses e aos demónios! Esta imagem
Acendida de cores palpitantes,
Além das quais se escondem num tumulto,
Outras vagas imagens, pretendendo
Vencer e dominar, romper a névoa,
Surgir à luz do dia!
Só nas trevas,
Se ilumina a expressão das criaturas,
Como um céu nocturno, Ó lua nova,
O teu perfil de prata que me lembra
O perfil de Virgílio a revelar-se
Na morta escuridão de dois mil anos.
É nas trevas que as almas aparecem.
E a sua face externa, dimanando
Este ar humano a arder em luz divina
Ou toldado de fumo enegrecido:
O relevo mais alto
Dum rosto que se anima, aquele traço
Que melhor o define, aquele modo
De olhar e de falar, aquele riso
Ou de anjo ou de demónio;
Este ar inconfundível e perpétuo
Que trouxemos do ventre maternal.
Fulgura na beleza amanhecente
E conserva acendida, entre as ruínas
Da trágica velhice,
A monótona lâmpada soturna,
Em melancólicos lampejos frios.
E inalterável paira sobre a face
Gelada dos cadáveres.. .
E dela se desprende; e, já liberto,
Em vulto de fantasma,
Fica, por todo o sempre, a divagar
Entre o luar e a noite, o Céu e a Terra.
II
O génio dum pintor
É dar as cousas como Deus as fez
E como Deus, sonhando, as concebeu,
Bem antes de as criar. É dar o sol
E a sombra original que lhe embrandece
O ímpeto doirado a desfazer-se,
Em luminosa espuma, sobre o mundo.
É dar a um rosto humano a forma viva,
A claridade viva que ele trouxe
Do ventre maternal...
Esta anímica luz de simpatia
Que se exala, no ar, e vem de dentro
Dum coração a arder:
A nossa própria imagem condensando,
Através da aparência transitória,
A eterna aparição.
III
A tinta dá a aparência deslumbrante,
A luz carnal que veste os ossos do esqueleto
E em nós acende uma ilusão de vida,
Um desejo de ser quase infinito,
Um sonho de existir eternamente...
Este sonho divino que nos leva
Nas suas ígneas asas sempre abertas
No coração da noite.
Para onde vamos nós? Para onde vai
A perfeita alegria que se apaga,
E nos deixa na alma
Como um sabor a cinza?
E no silêncio que vem da serra com a lua
E passeia comigo no jardim?
E o perfume das rosas e dos lírios
Que derramam, na sombra, bem se vê,
Fosforescências brancas e vermelhas,
Quando o luar é mármore desfeito
A cair, a cair, em luminoso pó?
Cai na terra que tem defunta palidez,
Sorrisos mortos, lágrimas de neve,
Pedrinhas preciosas que cintilam
E negras manchas de terror, fingindo
O recorte das árvores extáticas.
A tinta dá a aparência radiosa;
Um arco-íris nas paletas,
E a alegria da virgem Primavera
E o sangue que ilumina a tua face
E é como a aurora a percorrer-te as veias
E dos teus lábios foge, num sorriso...
Mas o carvão dá a noite, a intimidade, a alma,
Os recantos escuros da paisagem,
Onde o mistério e a sombra
Parecem adquirir uma presença vaga...
E extrai do alvor luarento do papel
O fantasma escondido, em nós, durante a vida,
Mas cá fora, ao luar, depois da nossa morte.
O óleo diurno lança num perfil
Todo o esplendor externo da expressão,
Este ar espiritual de etérea luz,
Que, emanando de dentro, se condensa
Em relevos de carne e sangue quente,
Donde se exala a dor em turbilhões de fumo
E a alegria agitando as luminosas asas.
Mas o carvão nocturno esboça a medo
A nossa intimidade, aquela imagem
Que em nosso coração se esconde e em certas horas,
De alto delírio e exaltação profunda,
Aparece, na Terra, em nosso nome,
Como um anjo de luz, como um demónio a arder!
Caim e Abel! Orfeu tangendo lira!
O grito de Jesus nas trevas do Calvário!
Lucrécio enlouquecido a escorraçar os Deuses
Para os confins do Olimpo...
E estrela do pastor que, à tarde, cintilava
Nos olhos de Virgílio, extáticas lagoas
Que reflectem a lua entre folhagens de árvore
E misteriosos perfis de espectros agoirentos.
Um retrato a carvão faz medo. Mostra à luz
Aquela negra sombra pavorosa
Que emite, para dentro, a criatura humana,
A fim de que ninguém a possa contemplar.. .
O segredo mais trágico das almas
A converter-se numa voz terrível,
Como um grito da Esfinge, no Deserto,
Que fizesse tremer o vulto das Pirâmides
E violentasse a tampa dos sepulcros,
Onde jazem os Deuses primitivos
E os primitivos Monstros que os poetas
E as entranhas da Terra conceberam.
Mas um retrato a óleo
É máscara pintada a tintas animadas,
Tão sensível de luz e de ternura
Que parece evolar-se num sorriso
E noutras claridades.
IV
O pintor surpreende a alma e o corpo,
A aparência da vida, a aparição da morte,
Mas não consegue dar o espírito divino,
O que somos além da morte e além da vida.
Só poderiam dar a imagem verdadeira
Do espírito divino as tintas milagrosas
Extraídas daquele sol eterno
Que faz desabrochar as almas e as estrelas...
Daquele sol oculto em certos versos,
Nas palavras de Paulo e de Jesus,
Nos gritos de aflição, do amor e da saudade
Que, junto dum sepulcro ou berço consagrado,
Lançam as mães aos ventos do Infinito!
Somente em certos versos misteriosos
Dos grandes Poetas, brilha aquele sol
Que faz desabrochar as almas e as estrelas.
Teixeira de Pascoaes