quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Odeio este tempo detergente 
Odeio este tempo detergente um tempo português que até utilizou os primeiros acordes da quinta sinfonia de beethoven como indicativo da voz do ocidente chamada actualmente a emissão em línguas estrangeiras um tempo que parou e só mudou o nome que puseram num mundo que muda a coisas que afinal permaneceram um tempo português que alguma vez até em camões vê o antecessor e criador de coisa como a nato com a profética visão de quem consegue conceber tal obra bem pouco literária por sinal e só possível graças à visão de quem com um só olho vê as coisas quatrocentos anos antes Odeio este meu tempo detergente de uma poesia que discreta até se erótica antigamente hoje se prostitui numa publicidade devida a algum poeta público que a certo detergente deu de repente esse teu nome musical de musa a ti precisamente a ti nesse teu rosto sorridente onde o poeta público publicitário porventura viu sobressair teu riso nesse território de alegria e a brancura mais alva nesses dentes alvejar E eu que faço eu aqui em todo este tempo detergente quando sinto subitamente cem saudades tuas que posso que não seja odiar mais um meio que jamais tentaria impedir evitaria um tempo que consente até contente que faças dentro em pouco um ano mais um meio onde nem mesmo eu mulher afinal sei que terei de fazer para deter ao menos um momento essa tua idade a tua juventude se possível anos antes de haver-te conhecido por acaso e já tarde na cidade onde nasceste cidade que unamuno diz viver morrer apenas por amor amor morto ou mortal mas amor imortal cidade solidão as ruas muita gente os sons o sol difusos e confusos corredores de uma faculdade folhas que se renovam rostos que outros rostos tão firmes tão presentes permanentes um só ano antes friamente destroem sem deixar sequer ao menos uma marca nessa fria impassível pedra o tempo os sóis dos séculos cingindo os cintos da cidade dessa cidade onde o povo morre novo à volta do mesmo monumento destinado a exaltá-lo cidade onde afinal a paisagem é pretexto para o homem cidade portuguesa ó portugal ó parte da hispânia maior maneira triste de se ser ibéria onde da terra emerge o homem que depois o rosto nela imerge ó portugal dos pescadores de espinho espinho do suicida laranjeira espinho praia antiga amiga e conhecida de unamuno a praia dos seus últimos passeios portugueses angústia atlântica e odor ó dor olor a campo praia que so' existe quando alguém a veste coisa que foi somente quando tu mulher a viste Aqui em portugal aqui na vasta praia portuguesa aqui nasci e ao nascer morri como morri a morte que por sorte sempre tive pesadamente do mais alto do meu peso dos meus anos em cada um dos sítios onde um dia estive Aqui tive dezasseis anos aos dezasseis anos aqui só vejo pés há muitos anos já Aqui o meu chapéu de chuva mais ao sul aceita em chapa o sol chapéu que fecho quando fecha o sol definidor do dia Tive um passado agora inacessível um passado tão alto como a torre do relógio da aldeia que pontual pontua a passagem do tempo um tempo não ainda detergente um tempo afinal só visível no sensível alastrar da sombra ao longo desse pátio só possível ao adolescente que mais tarde e mais só e de maneira mais sensível mais só se sentirá no meio da imensa gente que se sentia ali entre a andorinha e a nespereira Não o sabia então mas dominava um mundo esse mundo que espero que me espere um dia ao fundo lá quando findo o dia sob o chão me afundo e ao final em terra e em verdade é que me fundo Mas eu aqui completamente envolto neste tempo detergente é da segunda-feira e da semana que preciso pois posso lutar melhor por uma luz melhor do que esta luz do mar à hora do entardecer É da cidade é da publicidade é da perversidade que preciso e não tenho aqui na praia Não tenho nem o mar nem tão rudimentar a técnica de olhar alguém as minhas mãos para me devassar a vã vida privada É de inverno é domingo estou sozinho aqui na praia regresso a casa à noite apanho eu próprio a roupa no quintal e tenho a sensação de quem alguma coisa faz pela primeira e sente bem ou mal que tarde toma agora o seu banho lustral

Ruy Belo

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