sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Cantar do Amigo Perfeito Passado o mar, passado o mundo, em longes praias, de areia e ténues vagas, como esta em que haverá de nossos passos a memória embora soterrada pela areia nova, e em que sobre as muralhas quanta sombra na pedra carcomida guarda que passámos, em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda recordas esta, ó meu amigo? Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos da alheia juventude, impudica ou severa, esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se, ido na brisa o sol às mais sombrias curvas; e o meu e o teu olhar guiando-se leais, de nós um para o outro conquistando - em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda recordas, diz, ó meu amigo? Também aqui relembro as ruas tenebrosas, de vulto em vulto percorridas, lado a lado, numa nudez sem espírito, confiança tranquila e áspera, animal e tácita, já menos que amizade, mas diversa da suspeição do amor, tão cauta e delicada - em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda as recordas, diz, ó meu amigo? Também aqui, sorrindo em branda mágoa, desfiámos, sem palavras castamente cruas, não já sequer os íntimos segredos que o próprio amor, porque ama, não confessa, nem a vaidade humana dos sentidos, mas subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas - em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda recordas, diz, ó amigo? * Partiste e foi contigo a juventude. Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo, e o terror de não ser minha estátua jacente sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância desmentem - palpitar de traiçoeira fénix! - que só do amor ou só da terra haja saudade. Em longes praias, outras nuvens, outras vozes, tu sabes que a levaste, ó meu amigo? Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

Sem comentários: