sexta-feira, 1 de maio de 2009

Nem Sequer Sou Poeira Não quero ser quem sou. A avara sorte Quis-me oferecer o século dezassete, O pó e a rotina de Castela, As coisas repetidas, a manhã Que, prometendo o hoje, dá a véspera, A palestra do padre ou do barbeiro, A solidão que o tempo vai deixando E uma vaga sobrinha analfabeta. Já sou entrado em anos. Uma página Casual revelou-me vozes novas, Amadis e Urganda, a perseguir-me. Vendi as terras e comprei os livros Que narram por inteiro essas empresas: O Graal, que recolheu o sangue humano Que o Filho derramou pra nos salvar, Maomé e o seu ídolo de ouro, Os ferros, as ameias, as bandeiras E as operações e truques de magia. Cavaleiros cristãos lá percorriam Os reinos que há na terra, na vingança Da ultrajada honra ou querendo impor A justiça no fio de cada espada. Queira Deus que um enviado restitua Ao nosso tempo esse exercício nobre. Os meus sonhos avistam-no. Senti-o Na minha carne triste e solitária. Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano, Serei o paladino. Serei sonho. Nesta casa já velha há uma adarga Antiga e uma folha de Toledo E uma lança e os livros verdadeiros Que ao meu braço prometem a vitória. Ao meu braço? O meu rosto (que não vi) Não projecta uma cara em nenhum espelho. Nem sequer sou poeira. Sou um sonho Jorge Luis Borges, in "História da Noite" Tradução de Fernando Pinto do Amaral

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